estava calor, eu sofria com isso. a bebida e o calor me deixavam cada vez mais tonto. eu era carrossel, só vertigem, andava feito círculo que não se fecha, rodopia, escorrega, zig-zag, um-todo-bêbado-homem-cambalhota-em-queda-livre, indo ao chão encontrar-me com a sujeira, com os restos de cerveja, deixando lá em cima minha dignidade, que flutuava feito balão de hélio, criança feliz, orgulhosa dos joelhos ralados, sem mãe por perto.o porre era raro, fazia tempos que não bebia, das baladas só me restavam lembranças contorcidas, distorcidas e infiéis, mas nunca ingratas; foram anos trancado no alto do castelo, longe dos súditos e dos servos, distante de todos, longe de mim não mil metros, mas mil toneladas, pois era preciso sair debaixo do peso que joguei sobre mim para alcançar algum resquício de dança e festa. mas eu voltara, tão triunfante em meu tapete voador que me estenderam um outro vermelho, para que eu caminhasse acenando aos tais súditos, e aos fãs, que aguardavam ansiosos o primeiro gole, o primeiro grito, a primeira dança e a primeira queda proposital, daquelas que só eu maestrava, com a genialidade de um palhaço com todo seu esplendor, fingindo tropeços e o enrolar de pés, e caindo, afinal, feito bosta mole, elefante abatido, búfalo frouxo, cachorro manco, bigorna de dezesseis toneladas.mas eu já não era o mesmo, os anos me afetaram, já não tinha a coragem de atirar-me das escadas, de jogar-me no chão. essa queda-homem-cambalhota que eu acabara de sofrer não fora proposital, e sim resultado preciso da soma de três ou quatro tipos de bebidas, mínimo múltiplo comum da minha vergonha, denomindor da minha embriaguez; a ordem dos pés alterou o resultado.e havia um detalhe: os amigos já não eram os de outra hora. não havia a mesma graça, os mesmos sorrisos, a mesma fraternidade, e os risos que ouvi foram os mais filhas da puta possíveis, o que me fez querer levantar imediatamente, mas não mexi um músculo sequer, pois sabia que se o tentasse, levantaria trôpego, dançaria um tango, uma rumba e talvez dois mambos, para cair igualmente em samba-cadência e esfacelar no chão outra vez, e boêmia, aqui me tens de regresso.não, eu não faria isso.fiquei ali, pensando se lambia ou não a cerveja do chão, esperando meus olhos em "looping" pararem de rodar, para aí sim, reconstituído, levantar e exigir satisfações da platéia que ria sem saber apreciar o espetáculo, e sem ter pago o devido preço pelos ingressos.vamos logo, diziam, vambora, tão esperando a gente, levanta, seu bêbado do caralho, porra, deixa ele aí, vai tomar no seu cu, levanta, porra, ah, vão todos se fuder, me deixem aqui, contemplando meu estado, admirando o mundo de baixo, ah, levanta, porra, a gente tá indo, você não vai?se afastaram, me deixando em tão desejado silêncio.e foi aí que senti a mão gelada, que no meu corpo foi como um sorvete em dia de calor, uma limonada gelada em ataque de gastrite, ar condcionado em escritório-inferno. a mão tocou meu ombro, e eu me perguntava se ela teria dona, tão delicada, mas tão delicada, que nem precisava ter dona, já se bastava em si, não precisava de olhos, de orelhas, de corpo, de bunda, só a mão, tão delicada, já se inciava e se encerrava, completa; e a mão ficou lá uns cinco segundos eternos, me dando uma sacudida, até que a mão falou.-ô, meu, te sacanearam? quer ajuda pra levantar? cê tá bem?não era justo ouvir aquilo, aquela voz fina, mas levemente rouca de balada, doce de maracujá que não enjoa, cantando para mim naquele estado prenhe de vergonha.-vai, levanta, eu te ajudo.e a mão e a voz - que eu já acreditava serem duas entidades separadas, pois seria injusto duas coisas tão belas unir-se em uma existência só - me ajudaram a levantar, mas antes foi preciso me virar, e se eu tivesse fogo queimaria minhas retinas, só para não ver a beleza tão de perto, os cabelos pretos e longos, os seios tão corretos no seu formato que dispensariam qualquer aula de geometria ou física por toda uma vida ginasial, a camiseta preta do T-Rex, a delicadeza dos olhos fundos, o corpo flutuante, as pernas convidativas e tudo o que havia ali, que ainda por cima se movimentava levemente e de forma sublime.-porra, cê tá mal, hein?eu continuava sem responder, tinha medo de falar e desta forma permitir que ela levasse minha alma, era melhor permanecer calado, afastado, assim eu ainda poderia levantar e sair correndo, quem sabe.-vem, te ajudo a levantar.ela tentou, eu me apoiei nela, senti seu braço gelado, seu ombro pontudo, sensações tão boas que me arrancariam fácil um "eu te amo", mas antes que eu explodisse em ridículo, todas as leis da física nos lembraram que um anjo não agüenta um demônio; as asas quebraram, as penas voaram feito guerra de travesseiro de penas de colegiais cândidas em calcinhas de algodão, e ela caiu.antes que qualquer hiato se formasse, ela riu de forma tão graciosa que uma flor nasceu do asfalto e dois plantetas mudaram sua órbita, fazendo com que um meteoro invadisse a terra, destruindo oito países.eu caí na gargalhada. tomei fôlego e, agora inspirado pelo meu anjo caído, levantei-me e logo em seguida a segurei pela mão (ah, a mão gelada...), para levantá-la. ela limpou a bunda com tapas leves e eu me limpei todo, estava completamente sujo.-vem cá - disse ela - tá sujo aqui.e deu tapas leves na minha bunda também, para me limpar, e quase gritei "MAIS FORTE, MAIS FORTE", mas me contive, embora tenha exigido um grau razoável de concentração para fazer meu sangue empurrar o álcool para algum lugar, a fim de não cometer um ato tão digno dos melhores bêbados.já inspirado pelas risadas e pelos tapas, ousei falar.-pô, brigado, tava foda...-cê tá zureta, né, meu?-ah, nem tanto, já fiquei pior.-pior?-é, precisaram chamar um engenheiro e um guindaste para me levantar.risos. dessa vez não fora uma queda dos três patetas de riso fácil, mas ela ria das minhas palavras, ria com simpatia, com sinceridade, e com uma beleza que - putaqueoariu - eu estava fudido.-e aí? eu vi teus amigos indo embora.-amigo de cu é rola, bando de filhos da puta (mais risos). e você, tá sozinha?-ah, eu tô indo ali, ó.ela aponta o mercado 24 horas da esquina, onde tem muita gente. me convida para ir junto, mas tenho certo receio de ir no meu estado, muitas coisas passam pela minha cabeça em alguns segundos, onde é que tudo isso vai dar? melhor parar por aqui, vai dar merda depois, "ah, acho melhor eu ir embora", "ah, qué isso, vamo lá comer alguma coisa", e toca meu braço bem no "co" de "comer alguma coisa", e a mão gelada me convence, aliviando toda e qualquer úlcera.fomos.eu andando, ela flutuando.chegando, ela me apresenta alguns amigos, eram cinco ou seis, uns três caras, umas duas meninas, não presto muita atenção (ainda estou me deliciando com o toque gelado de sua mão, que agora já ultrapassou a pele e chegou nas veias, espalhando-se pelo meu sangue). mas pelo menos serviu para ela saber meu nome e eu o dela, embora seja necessário esquecer esse nome um dia, então é melhor não repití-lo, com medo de invocá-la.os amigos eram engraçados, embora idiotas, todos flertavam muito uns com os outros e comigo, e isso tudo contribuiu para que a noite se alongasse para a casa de um deles, e minha desgraça ia se concretizando, e ficando mais fácil flertar com ela, que volta e meia me tocava com suas mãos geladas, que agora já chegavam em todos os lugares do corpo e começavam a transbordar de mim, exigindo todas as represas mundiais a fim de estocar tal sensação.armados com mais cerveja que compramos no mercado, nos dividimos em dois carros: eu, ela e mais uma amiga fomos no meu, o resto, em outro carro, de um deles.liguei o som e coloquei um CD, radiohead.-puta merda, eu amo radiohead, disse meu anjo.-foooooooooda, disse a menina que veio conosco, que tinha o cabelo curto e verde de planta cheia de clorofila.-põe foda nisso."everything in its right place" íamos cantando, entre outras, como "idioteque", todos bêbados, eu dirigindo devagar, e ainda assim só consegui dirigir porque havia comido algo e cortado um pouco do álcool, e eu ia muito devagar mesmo, não sei se pela bebedeira ou se para prolongar a viagem e ficar ouvindo radiohead com ela, com medo de nosso destino, who's in a bunker, who's in a bunker, woman and children first, womam and children first, woman and children...chegamos. a cabelo verde sai pela porta de trás e antes que eu me movimentasse, aquelas mãos, ah, puta merda, tocaram minha coxa, me segurando para eu não sair do carro, AI, CARALHO, toca radiohead, toca, ice age coming, ICE AGE COMING, let me hear both sides, let me hear both sides... e eu voltei, e seus lábios tocaram os meus, e as mãos não eram nada perto da boca, os lábios de iceberg, o gelo descendo pela minha garganta e percorrendo todo o meu corpo, me arrepiando inteiro, apaixonado-titanic, sabendo que aquilo ia dar em merda muito grande, e os lábios carnudos, mas não tanto, na medida certa, mas sempre gelados, e a língua dela na minha, this is really happening, this is really happening... e fui até o polo norte e voltei, depois fui ao polo sul, passeando pelas nuvens, voei com alguns patos que migravam, fui até plutão, saturno, vênus, me enfiei no freezer de casa e voltei para aqueles lábios gelados que tanto me aliviavam.ficamos no carro um bom tempo, sem dizer uma palavra. em algum momento surgiu a questão do que deveríamos fazer: ficar no carro, subir para onde todos tinham ido, ir para algum "lugar", onde pudéssemos ficar mais "à vontade", PUTAQUEOPARIU, qualquer coisa, só não tira esses lábios daqui, só não sai voando agora, qualquer coisa, qualquer coisa, qualquer coisa, mas me dá seus lábios.eu devia ter dito para irmos a um motel, mas sou devagar demais. perante minha molenguice, ela sugeriu que subissímos.ao chegarmos, os outros ouviam uma merda qualquer dos anos 80, e eu mal os enxergava, estava embriagado do meu anjo, o resto era só silhueta, fagulha, não era nada. ao que parecia, também estavam drogados, a de cabelo verde parecia estar pior, mas só assim mesmo pra ouvir aquela música, eu sempre achei que os anos 80 não deixaram nada que prestasse culturalmente de herança. e sentamos eu e meu anjo no chão, já recomeçando nossos amassos e eu perguntei se ela não preferia ir mesmo a outro lugar.-onde?-pra igreja, quero casar com você.ela riu da minha piada-chaveco ridícula e piegas, mas riu de verdade, e não por bondade, mas naquele riso tinha algo de "bobinho" e pronto: eu tinha feito cagada. só me restava beijá-la de novo, suprimindo o espaço para que ela não percebesse o quanto eu era palerma.continuamos os beijos e eu já tinha construído meu iglú, já conhecia os esquimós pelos nomes e já alimentava os ursos polares na mão. ela levantou e me levou para um quarto e juro que li "Brastemp" na porta, e lá fomos nós, eu sem saber o que fazer, ela me guiando. quando a porta ia se fechar, alguém gritou.-PORRA! A CLARA!e aí meu anjo correu para a sala, Clara era o nome da cabelo de fotossíntesse, e foi grito para tudo quanto é lado, a clara vomitando, "ela vai morrer", não, não vai, "mas é overdose!" OVERDOSE DE QUÊ, PORRA? ela só bebeu e fumou maconha, caralho, e a clara era irmã do meu anjo, eu nem sabia, nem se pareciam, e eu, me vendo obrigado a deixar tudo aquilo de lado, fiz o papel que me cabia entre aquele bando de imbecis de mal gosto musical, e esqueci a mão gelada, os lábios de iceberg - e também minha bebedeira - e prontamente me tornei o responsável, o adulto que há pouco era o homem-cambalhota, e perguntei o que ela tinha bebido, comido, fumado, enfiado no rabo, cagado ou sei lá o quê, porque a menina não párava de vomitar, meio inconsciente, perigoso engasgar.me vi, algum tempo depois, no hospital com meu anjo no colo, esperando a estúpida da irmã de cabelos verdes tomar glicose ou sei lá o quê, porque não passava de uma bebedeira mal feita e de comida mal digerida.-putz, brigada, se não fosse você... o bando de maluco ia só ficar gritando, você que tomou a atitude, que resolveu tudo...nossa...é, eu era o herói, e minha medalha repousava sobre meu colo, não havia mais clima para beijo, para o quarto, para o carro, para nada, mas ela repousava a cabeça tão doce no meu colo que eu poderia ficar ali séculos, e por mim poderiam vir todas as irmãs dela, uma a uma se desmanchando e passando mal, para prolongar o colo e o carinho.ela me contou da família, da vida, da irmã - "ela não usa nada, nem eu, a gente só bebe, minha mãe não pode ver o estado dela, temos que esperar" - e enquanto contava, ainda com a cabeça no meu colo, suas mãos passeavam meu pescoço, seus carinhos corriam meu corpo, me gelando parte por parte, e assim que ela gelava um braço, ia para o outro, enquanto o anterior já derretia, mas logo ela voltava, e dançamos assim, sentados, refrescados, isolados de todo o mal que havia lá fora, em nosso novo castelo de gelo.e ficamos assim, horas e horas, e eu não queria pensar em mais nada, só em continuar passando meus dedos naqueles lábios de iceberg, torcendo para que a previsão do tempo fosse abaixo de zero, para que nada se derretesse em minhas mãos, rezando por uma nova era glacial.
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